BACEN - 2009 - CONHECIMENTOS GERAIS - QUESTÃO 44
Fase I: O Ajuste Fiscal
A primeira fase do Plano Real foi composta por dois esforços de ajuste fiscal: O Programa de Ação Imediata (PAI) e o Fundo Social de Emergência (FSE). O PAI, a rigor, já havia sido lançado em maio de 1993, tendo por foco a redefinição da relação da União com os Estados e do BC com Bancos Estaduais e Municipais, além de um programa de combate à sonegação. Dando continuidade a esses esforços, propunha-se, em fevereiro de 1994, a aprovação do FSE. Este seria constituído através da desvinculação de algumas receitas do governo federal, visando atenuar a excessiva rigidez dos gastos da União ditada pela constituição de 1988.
De acordo com Edmar Bacha, a coexistência entre déficit operacional baixo (menos de 1,0% na média 1991-1993) e a alta inflação no país não deveria ser interpretada (como fora por ocasião do Plano Cruzado) como prova da pouca relevância do desajuste fiscal para a inflação. Existiria no Brasil um déficit potencial, um desequilíbrio não revelado. Isso porque a demanda por recursos, expressa por ocasião da votação orçamentária, vinha sendo muito superior ao efetivamente verificado ao final do ano fiscal.
A relativa adequação entre o hiato de recursos orçados e o resultado fiscal era realizada através de dois procedimentos. Em primeiro lugar, o orçamento embutiria, em regra, uma previsão inflacionária bem inferior à efetivamente observada. Como as receitas públicas no Brasil se encontravam indexadas (pela inflação verificada) e as despesas eram fixas em termos nominais, a subestimativa da inflação favorecia a redução do déficit. Em segundo lugar, o Ministério da Fazenda adiava frequentemente a liberação das verbas orçamentárias, corroendo o valor real dos gastos. Dessa forma, existia um desajuste fiscal ex ante (isto é, entre os gastos e as receitas orçadas) muito elevado, mas conforme a inflação corroía os gastos do governo em termos reais (e suas receitas mantinham-se relativamente protegidas), surgia, ex post, um déficit apenas moderado.
O fato é que as mudanças introduzidas pelo PAI e pelo FSE não se mostraram suficientes para assegurar o equilíbrio fiscal seque em 1995. Além disso, o governo foi extremamente otimista nas sua perspectiva em aprovar, nos anos que se seguiram, reformas estruturais no Congresso. Estas eram consideradas, na concepção do Plano, fundamentais para a estabilidade duradoura - e não foram feitas. Houve forte deterioração no superávit primário no primeiro ano após a introdução da nova moeda, Real (1995). Nos demais anos (1996-98) a maior contribuição para o aumento do déficit operacional, que reúne além das contas primárias as despesas de juros, vieram destas últimas.
A falta de um ajuste fiscal não implicou o retorno da inflação, como pressupunha o modelo de Bacha. A inflação, na realidade, foi reduzida continuamente no período que sucedeu à introdução da moeda, até 1999, quando ocorreu a desvalorização cambial. O ajuste fiscal proposto pelo Plano Real, em suma, não foi eficaz e sua ausência não impediu a queda da inflação no período.
Fase II: Desindexação
A segunda fase do Plano buscava eliminar o componente inercial da inflação. Partiu-se do princípio de que para acabar com a inflação era preciso zerar a memória inflacionária. Mas, em vez da utilização de congelamentos de preços, a desindexação seria feita de forma voluntária, através de uma quase moeda, que reduziria o período de reajuste de preços.
Tão logo foi lançada a proposta da URV (Unidade Real de Valor), os economistas familiarizados com a proposta ''Larida'' reconheceram os vínculos entre uma e outra. De fato, os autores haviam sugeridos encolher a memória inflacionaria através da introdução de uma unidade monetária indexada, originalmente a ORTN (e, portanto, sem inflação). Esta convivera, durante alguns meses, com a velha moeda (não indexada), deixando que os agentes optassem livremente entre as duas moedas. As semelhanças entre a proposta ''Larida'' e as medias implementadas na segunda fase do Plano Real são realmente evidentes: livre-arbítrio para a adesão dos preços e contratos ao novo indexador; conversão das rendas contratuais pelo seu valor real médio; dólar atrelado à variação do indexador etc. Todavia, importantes mudanças foram introduzidas na proposta original.
Simonsen, um dos principais críticos do plano, observou que o valor da ''moeda nova'' (indexada) não seria estável como pretendiam os dois autores. Na realidade, o valor oscilava quando a inflação se acelerava (ou desacelerava), em função da impossibilidade de evitar alguma defasagem entre a apuração do índice de preços e a fixação do valor de ORTN. Em outras palavras, dadas as dificuldades de se construir um indexador perfeito, que se movesse de forma simultânea aos preços correntes, haveria sempre alguma defasagem entre a inflação atual e aquela apurada estatisticamente. Por outro lado, a circulação de uma ''moeda velha'' com uma ''moeda nova'' (indexada) permitiria que o público manifestasse rapidamente repúdio à ''velha moeda'', em favor da ''nova'', fazendo explodir a velocidade de circulação inflacionária, o índice representado pela ''moeda nova'' ficaria necessariamente defasado em relação à inflação corrente (em virtude da necessidade de pelo menos alguns dias para computar o próprio índice). Ou seja, ocorreria alguma perda de poder aquisitivo na ''nova moeda''; em outras palavras, ocorreria alguma inflação na ''nova moeda''. A hiperinflação na ''velha moeda'', em resumo, acabaria por contaminar a ''nova''.
Para evitar que ocorresse a fuga da ''velha moeda'' para ''nova'', estipulou-se no Plano Real que, simplesmente, não existiria uma ''nova moeda'', mas apenas uma nova unidade de conta. A URV foi então racionalizada como um processo de recuperação das funções de uma mesma moeda. Através dela se recuperaria, primeiramente, a função de unidade de conta (já que URV era apenas um indexador para contratos, permanecendo o cruzeiro real com a função de meio de pagamento), para depois transformar a URV em Real, resgatando sua função de reserva de valor, pelo fim da inflação.
A URV começou a vigorar a partir do dia 1º de março de 1994. Entre 1º de março e 30 de junho, o BC fixou diariamente a paridade entre o cruzeiro real e a URV, tendo por base a perda do poder aquisitivo do cruzeiro real. Em 1º de julho de 1994 foi lançado o Real - e extinta a URV.
A segunda inovação em relação a proposta Larida se refere à criação de um indexador superior. O cálculo diário da URV foi estabelecido através da variação pro rata de três indicadores de preços: IGP-M, IPCA-E e IPC-Fipe. Como a URV era um mecanismo de curta duração, era conveniente utilizar um conjunto de índices para amenizar os benefícios que a utilização de um único índice traria a certos setores da economia (aqueles cujos principais insumos recebem maior peso na construção do índice).
Além disso (terceira inovação), estabeleceu-se que os preços finais teriam de ser expressos em cruzeiros, obrigatoriamente (exceto nas últimas semanas de junho), sendo a cotação em URVs facultativa. Essa medida visava evitar um excessivo encurtamento do período de reajuste, o que aceleraria demasiadamente a inflação - o que pode ser considerado uma terceira inovação em relação à proposta original. Introduziram-se, assim, custos de cardápios (ou custos de menu).
Uma quarta e importante contribuição ao aperfeiçoamento da proposta Larida foi feita por um de seus próprios criadores. Ao invés da política monetária passiva, implícita na proposta original, Persio Arida defendeu que, ainda que a inflação fosse puramente inercial, uma estratégia de desindexação provavelmente só seria bem-sucedida se elevasse juros no imediato pós-Plano. Basicamente, porque o fim da inflação leva a uma exploração natural do consumo que, se não contida, pode inviabilizar a estabilidade, rapidamente. Assim, ao contrário do ocorrido no Plano Cruzado, no início do Plano real, a equipe do governo optou por aumentar as taxas reais de juros e elevar as taxas de depósito compulsório da economia, após a introdução da nova moeda, como veremos.
Tal como no Plano Cruzado, os salários foram convertidos pela média dos valores reais obtidos nos quatro meses anteriores (período dos dissídios salariais da época). Entretanto foi introduzida uma importante mudança (quinta inovação): o pagamento pelo conceito de caixa. A partir de 1º de março, os salários ficavam fixos em URV, e eram pagos pelo URV do dia do pagamento. Isso equivalia à correção mensal dos salários - uma reivindicação antiga dos sindicatos. No caso das demais obrigações contratuais, ficou estabelecido que, no dia 1º de julho, todas elas deveriam estar expressas na nova unidade de conta. O voluntarismo na adesão à urverização dos contratos reforçava a ideia de que o Plano Real respeitava, ao máximo, os mecanismos de mercado, evitando o uso de tablitas e outras formas de intervenção do passado. Ao mesmo tempo, a livre adesão dava tempo aos agentes para renegociarem os valores de correção pela inflação que, em grande medida, já estava embutida no valor dos contratos em vigor à época.
A URV durou apenas quatro meses. Na prática, houve aceleração inflacionária no mês em que a URV foi introduzida e no mês que antecedeu a emissão do Real. Entretanto, a inflação entre abril e maio não se acelerou.
A aceleração inflacionária do primeiro mês após a introdução da URV era perfeitamente esperada pela teoria. O pagamento pela URV do dia, na prática, implicava em uma redução do período de reajuste de quatro meses para um. Todavia, a inflação medida pela URV não seguiu se acelerando. A solução brasileira teria sido superior, já que a desagregação das funções da moeda teria evitado a fuga da moeda velha para a nova e, com isto, a possível contaminação inflacionária.
Fase III: Âncora Nominal
A medida provisória (MP) 542, que deu início à terceira fase do Plano Real, apresentava um conjunto de medidas sobrepostas. Eram elas, entre outras:
(1) o lastreamento da oferta monetária doméstica (no conceito de base monetária) em reserva cambiais, na equivalência de R$1 por US$1 (Art. 3 da MP) ainda que essa paridade pudesse ser alterada pelo CMN;
(2) a fixação de limites máximos para o estoque de base monetária por trimestre (ate março de 1995), podendo as metas serem revistas em até 20%; e
(3) a introdução de mudanças institucionais no funcionamento do CMN, buscando dar passos em direção a uma maior autonomia do BC.
Não foi por outro motivo que logo após a divulgação de seu conteúdo, diversos economistas criticaram a MP pela indefinição, na prática, de certos mecanismos referidos no documento. Em primeiro lugar, o governo estabeleceu o lastro sem garantir a conversibilidade entre o dólar e o real - o que retirava parte de sua credibilidade. Em segundo lugar, sabia-se que a redução da inflação pela URV levaria a uma natural remonetização da economia, mas a magnitude em que se daria o fenômeno era ainda desconhecida. Nesse sentido, o risco de as metas monetárias estabelecidas pela MP serem ultrapassadas era bastante alto. Por fim, e mais importante, a MP foi acusada de conter uma grave inconsistência econômica ao lançar, simultaneamente, âncoras monetárias e cambial em economia com mobilidade de capitais. Quanto a este aspecto, poucos dias depois, foi esclarecido que o real adotaria âncora monetária (metas) e o câmbio seria livre para oscilar para baixo, mas teria o teto fixo em 1 real = 1 dólar (banda assimétrica).
Além dessas medidas, o BC anunciou um enorme aperto de liquidez. Os recolhimentos compulsórios sobre depósitos à vista (novos) aumentaram (de 40% para 100%). Os compulsórios foram sendo gradualmente reduzidos. Esse significativo aperto de liquidez logo após o lançamento da nova moeda é uma das maiores características do Plano Real em contraposição a planos de estabilização da segunda metade dos anos 1980. O objetivo desse aperto era conter o impulso de demanda que se verificara após a estabilização no Brasil.
No que se refere à MP citada, a rigor, nenhuma das medidas previstas foi integralmente mantida na terceira fase do Plano: nem as metas monetárias, nem o lastro, nem a tentativa de fazer mudanças no Conselho Monetário na direção de uma maior autonomia ao BC, ou mesmo a manutenção de uma paridade fixa do dólar em relação ao limite superior da banda. A política de câmbio livre para baixo, adotada após a emissão do real, durou apenas três meses. Nestes, o BC se absteve de intervir no mercado de câmbio, ao mesmo tempo em que procurava, em vão, cumprir metas monetárias rígidas. Em outubro de 1994, porém, devido, entre outras razões, ao insucesso das metas monetárias, o governo resolveu mudar de âncora, abandonando a monetária em prol da cambial, sem compromisso formal com o lastro.
As duas grandes virtudes da adoção de uma âncora cambial, geralmente ressaltadas pelos economistas, são:
a) permitir o estabelecimento (uma vez que a âncora seja crível) de contratos de longo prazo (inviáveis em regimes de elevada inflação);
b) exerce forte pressão sobre os preços no setor de bens comercializáveis - sendo o impacto sobre o nível geral dos preços dependendo do grau de abertura da economia em questão e do grau de desequilíbrio entre oferta e demanda no setor de bens não comercializáveis.
Apesar das vantagens da âncora cambial no tocante à rápida convergência dos preços e ao aumento dos prazos de contratação, sua adoção tem consequências negativas para determinadas variáveis econômicas. são cinco as mazelas ressaltadas pelos críticos da proposta da âncora cambial:
(i) reforça a absorção interna, podendo ocasionar pressões inflacionárias e até o abandono do programa;
(ii) faz com que a economia perca competitividade no comércio exterior, em função do aumento dos salários medidos em dólares;
(iii) deteriora as contas externas, devido à apreciação real do câmbio uma vez que a inflação interna cai, porém, permanece acima da internacional por algum tempo;
(iv) até que o programa se torne crível ou devido à existência de rigidez em alguns preços, as taxas de juros devem permanecer inicialmente superiores às internacionais, para depois convergirem;
(v) provoca ciclos na atividade real da economia.
O Plano Real apresentou diversas características comuns aos planos baseados em âncora cambial adotadas em países de longa história inflacionária. Assim como nas demais experiências:
■ houve apreciação cambial, decorrente de um câmbio pouco flexível e resistência na queda da inflação;
■ a atividade real da economia sofreu um boom inicial com queda do desemprego (1995) e posterior aumento deste;
■ a expansão do produto (também) se baseou principalmente no consumo (duráveis em particular, mais sensíveis ao crédito), apesar de que, como nas experiências internacionais, tenha ocorrido modesto aumento do investimento produtivo e ganhos mais significativos de produtividade;
■ os salários reais, nos primeiros períodos do Plano, também se elevaram;
■ os índices de preços ao consumidor tenderam a ficar, numa primeira fase, acima dos índices de preços por atacado;
■ houve rápida deterioração da balança de conta-corrente;
■ o Brasil teve os déficits em transações correntes financiados por fluxos de capital, abundantes durante certo tempo, que (também) se reverteram em momentos de crise de confiança;
■ o país sofreu uma crise cambial seguida de desvalorização em 1999.
Na realidade, apenas duas variáveis não se comportaram, no Brasil, conforme previsto pela teoria econômica desenvolvida para explica-la: os juros e o déficit público.
Em geral, nos países de alta inflação que adotam âncora cambial, as taxas de juros, se bem que inicialmente mais elevadas que as internacionais, tendem a convergir para o patamar externo com o passar do tempo. No Brasil, não só as taxas de juros foram mantidas elevadas ao longo de todo o período 1994-1998 como se mostraram bastante voláteis. Quanto ao déficit público, o que normalmente ocorre é uma redução do déficit na fase expansiva do ciclo e posterior deterioração na fase depressiva. No caso brasileiro, houve de fato uma melhora inicial (em 1994) seguida de grande deterioração.
Diante desse comportamento, pode-se dizer que os elevados juros durante todo o período do Real funcionaram como uma segunda âncora para os preços. A partir de certo ponto, inclusive, a âncora dos juros se tornou mais relevante do que o papel desempenhado pelo câmbio. Este, a rigor, perdeu, nos últimos anos, seu caráter de âncora dos preços: "(....) dado que (o câmbio) evolui em um ritmo mais rápido do que as variáveis supostamente ancoradas".
A mudança de importância das âncoras explica o comportamento divergente dos juros no Brasil em relação à experiência internacional, em países que adotam estabilizações com âncora cambial. Embora seja indiscutível que os momentos de elevação dos juros correspondem a momentos onde vivemos choques externos (Crise do México, Crise da Ásia e Crise da Rússia), os juros no Brasil permaneceram, por todo o período, em patamares elevados. Assim, ao contrário da experiência internacional, os juros aqui não convergiram, em grande medida, porque sempre foram usados como uma arma contra a inflação e, a partir de determinado ponto, mudou-se, por opção de política econômica, a principal âncora, do câmbio para os juros.
O comportamento dos juros também ajuda a explicar, embora não exclusivamente, a diferença entre o comportamento das contas fiscais no Brasil em relação à experiência internacional. Neste, o comportamento das contas do governo acompanham o ciclo do crescimento discutido. Aqui, nos anos em que os juros são maiores, as contas fiscais pioram - e vice-versa, a exceção do ano de 1995, onde a maior deterioração deriva do comportamento das contas primárias.
A combinação de câmbio apreciado com elevados juros colocou a economia em uma trajetória decrescimento cada vez menor, déficits crescentes no balanço de pagamentos, ao mesmo tempo em que a dívida pública se expandia. O êxito sobre a inflação dessa estratégia combinada de câmbio apreciado com elevados juros (e não de uma estratégia de combate a inflação baseada em política fiscal) é indiscutível - mas o custo para o lado real da economia foi também bastante elevado.
Enviar um comentário
0 Comentários