O poder regulamentar é a faculdade de que dispõem os Chefes do Poder Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) para editar atos administrativos normativos.
Em regra, o exercício do poder regulamentar se materializa na edição de:
■Decretos e regulamentos, os chamados decretos de execução ou decretos regulamentares, que têm por objetivo definir procedimentos para a fiel execução das leis, nos termos do art. 84, IV da CF5; ou de
■ Decretos autônomos, que têm como objetivo dispor sobre determinadas matérias de competência dos Chefes do Executivo, listadas no inciso VI do art. 84 da CF6, as quais não são disciplinadas em lei.
A doutrina enfatiza que o poder regulamentar, consubstanciado na edição de decretos e regulamentos de execução e de decretos autônomos, é um poder inerente e privativo do Chefe do Poder Executivo.
É fato, porém, que no Brasil, além dos Chefes do Poder Executivo, diversos órgãos e autoridades administrativas, e mesmo entidades da administração indireta, também editam atos administrativos normativos. É o caso, por exemplo, dos Ministros de Estado, que possuem competência para “expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos” (CF, art. 87, inciso II), ou da Receita Federal, que edita instruções normativas para orientar os contribuintes no recolhimento de tributos. Na administração indireta, pode-se tomar como exemplo o Banco Central, a CVM e as agências reguladoras, que editam resoluções, portarias e instruções normativas sobre assuntos de sua competência.
Contudo, os atos normativos produzidos por esses outros órgãos e autoridades, denominados regulamentos autorizados, não decorrem do poder regulamentar, visto que este, como vimos, é exclusivo (inerente e privativo) do Chefe do Poder Executivo. Para solucionar a questão, a doutrina costuma dizer que esses outros atos normativos têm fundamento no poder normativo da Administração Pública, que seria um poder mais amplo que o poder regulamentar, por abranger a capacidade normativa de toda a Administração para editar regulamentos autorizados.
Assim, o poder regulamentar, exclusivo do Chefe do Poder Executivo, seria uma espécie do gênero poder normativo, este extensível a toda a Administração Pública. Deve ficar claro, apenas, conforme salientam Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, que ao praticar atos com base no poder regulamentar (espécie), o Chefe do Poder Executivo não deixa de estar exercendo o poder normativo da Administração Pública (gênero).
Vamos agora esmiuçar um pouco mais as características dos atos administrativos normativos.
Decretos de execução ou regulamentares
Os decretos de execução ou regulamentares, nos termos do art. 84, IV da CF, são regras editadas pelo Chefe do Poder Executivo com vistas a possibilitar a fiel execução das leis que, de algum modo, envolvam atuação da Administração Pública.
Como exemplo, pode-se citar o Decreto 8.624/2014, que regulamenta a Lei nº 12.741/2012. A referida lei preceitua que o valor de determinados tributos incidentes sobre as mercadorias e serviços devem constar dos respectivos documentos fiscais, ou seja, a lei cria um direito de informação para o consumidor e uma obrigação de informar dirigida aos empresários. Já o decreto não cria novos direitos e obrigações, mas apenas estabelece “como” serão os procedimentos para que a lei seja cumprida, por exemplo, definindo que a informação deverá ser aposta em campo próprio ou no campo “Informações Complementares” do respectivo documento fiscal.
Detalhe importante é que a competência para expedição dos decretos e regulamentos de execução não é passível de delegação (CF, art. 84, parágrafo único).
Uma vez que sempre necessitam de uma lei prévia a ser regulamentada, os decretos de execução são considerados atos normativos secundários, sendo a lei o ato primário, por decorrer diretamente da Constituição.
Deve ficar claro que os decretos de execução não podem, em hipótese alguma, “inovar” o direito, vale dizer, não podem criar direito ou obrigação que a lei não criou, nem restringir ou ampliar direito ou obrigação disciplinada na lei. Ao contrário, os decretos devem se limitar ao conteúdo da lei, explicando seus dispositivos e definindo os procedimentos operacionais necessários à sua fiel execução, sob pena de sofrer invalidação.
No nosso exemplo, o Decreto não poderia determinar que os comerciantes incluíssem no documento fiscal informações sobre outros tributos além daqueles expressamente definidos na lei, mas apenas estabelecer “como” o valor dos tributos previstos na lei deve ser informado ao consumidor.
Não obstante, Carvalho Filho pondera que é legítima a fixação de obrigações subsidiárias (ou derivadas), diversas das obrigações primárias (ou originárias) contidas na lei, desde que essas novas obrigações guardem consonância com as obrigações legais. Se, por exemplo, a lei concede algum benefício às pessoas que se enquadrem em determinada condição, pode o ato regulamentar indicar quais documentos o interessado estará obrigado a apresentar para comprovar sua situação. Essa obrigação probatória não está expressamente prevista na lei, mas está nela amparada, podendo ser considerada legítima.
Os decretos de execução ou regulamentares, em regra, são atos de caráter geral e abstrato, ou seja, não possuem destinatários determinados e incidem sobre todos os fatos ou situações que se enquadrem nas hipóteses neles previstas.
A doutrina enfatiza que o Chefe do Poder Executivo só pode regulamentar leis administrativas, isto é, leis cuja execução, de algum modo, necessite da atuação da Administração Pública. Assim, o poder regulamentar não abrange, por exemplo, a regulamentação das leis penais e processuais, que prescindem de qualquer participação da Administração para o seu cumprimento.
As leis podem ou não prever, de forma expressa, a necessidade de regulamentação para que possam ser aplicadas. Caso não tragam essa previsão, as leis produzem efeitos desde o momento em que entram em vigor, ou seja, são leis autoexecutáveis, pois o legislador entendeu que suas disposições são claras o suficiente para serem aplicadas sem regulamentação. Entretanto, embora sejam autoexecutáveis, ainda assim podem ser regulamentadas caso o Poder Executivo entenda necessário, visto que a competência para editar decretos com vistas à fiel execução das leis decorre diretamente da Constituição (art. 84, IV) e, por isso, não depende de autorização do legislador ordinário para ser exercida.
Por outro lado, as leis que trazem a necessidade de regulamentação (leis não autoexecutáveis) não produzem efeitos antes da expedição do decreto regulamentar requerido. Nesse caso, conforme ensina Hely Lopes Meirelles, “o regulamento opera como condição suspensiva da execução da norma legal, deixando seus efeitos pendentes até a expedição do ato do Executivo”.
Exceção ocorre quando a própria lei define prazo para sua regulamentação e o decreto não é editado dentro desse prazo. Nessa hipótese, a lei passa a produzir efeitos mesmo sem o regulamento, uma vez que “a omissão do Executivo não tem o condão de invalidar os mandamentos legais do Legislativo”. Nesse caso, os titulares de direitos previstos na lei podem interpor na Justiça o chamado mandado de injunção, conforme previsto no art. 5º, LXXI da CF, com vistas a obter decisão do Poder Judiciário que lhes permita exercer tais direitos.
Decretos autônomos
Os decretos autônomos são regulamentos editados pelo Poder Executivo na qualidade de atos primários, diretamente derivados da Constituição, ou seja, são decretos que não se destinam a regulamentar alguma lei, não precisam de lei prévia para existir. Sua finalidade é normatizar, de forma originária, as matérias expressamente definidas na Constituição, inexistindo qualquer ato de natureza legislativa que se situe entre eles e a Constituição.
No Brasil, a edição de decretos autônomos só pode ser feita para dispor sobre (CF, art. 84, VI):
a) Organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
b) Extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos.
Importante ressaltar que essas são as duas únicas matérias passíveis de normatização mediante decretos autônomos. Qualquer outro tema deve ser tratado originariamente por lei.
As matérias objeto dos decretos autônomos constituem competência privativa do Chefe do Poder Executivo, vale dizer, sua edição não conta com a participação do Poder Legislativo. Encontram-se sob a denominada “reserva de administração” (matérias que somente podem ser reguladas por ato administrativo), estando fora da competência do Poder Legislativo.
Ao contrário do que ocorre com os decretos de execução, a competência para edição dos decretos autônomos pode ser delegada a outras autoridades administrativas. Na esfera federal, o Presidente da República pode delega-la aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União (CF, art. 84, parágrafo único).
Maria Sylvia Di Pietro salienta que, na verdade, apenas a alínea “a” do art. 84, VI da CF (organização e funcionamento da administração pública, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos) constitui manifestação do poder regulamentar, ou seja, o decreto autônomo que dispõe sobre essa matéria possui as características de um ato administrativo normativo. Quanto à alínea “b”, segundo a autora, representa típico ato administrativo de efeitos concretos, porque a competência do Presidente da República se limitará a extinguir cargos ou funções, quando vagos, e não a estabelecer normas sobre a matéria.
Regulamentos autorizados
Os regulamentos autorizados são aqueles em que o Poder Executivo, por expressa autorização da lei, completa as disposições dela constantes, e não simplesmente a regulamenta, especialmente em matérias de natureza técnica.
Típico exemplo de regulamentos autorizados são as normas editadas pelas agências reguladoras.
Como vimos, tais regulamentos devem observar as diretrizes, os parâmetros, as condições e os limites estabelecidos na lei que autorizou sua edição, de modo que a norma elaborada funcione apenas como uma complementação técnica necessária das disposições legais.
Uma vez que podem ser editados por órgãos e entidades de natureza técnica, constituem manifestação do poder normativo, e não do poder regulamentar, que é privativo do Chefe do Executivo.
O regulamento autorizado é ato administrativo secundário (deriva da lei, ato primário que o autoriza). Não se confunde com a lei delegada, prevista no art. 68 da CF, pois esta é literalmente uma lei, cuja edição é delegada pelo Congresso Nacional.
Aliás, frise-se que é vedada a utilização de regulamentos autorizados para tratar de matérias constitucionalmente reservadas à lei.
Controle dos atos regulamentares
Caso o Poder Executivo extrapole os limites da lei no exercício do seu poder regulamentar, o Congresso Nacional poderá sustar tais atos normativos. É o que diz o art. 49, V da CF:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;
Cuida-se, como se pode observar, de controle exercido pelo Legislativo sobre o Executivo no que diz respeito aos limites do poder regulamentar, com o objetivo de coibir violação indevida da função legislativa.
Ademais, o Poder Judiciário e a própria Administração podem exercer controle de legalidade sobre atos normativos, anulando aqueles considerados ilegais ou ilegítimos.
Em relação ao controle judicial, é possível ao Poder Judiciário controlar a legalidade e a constitucionalidade de atos administrativos normativos.
Caso o ato normativo esteja em conflito com a lei que ele regulamenta, por extrapolar seus limites (ultra legem) ou por contrariala frontalmente (contra legem), a questão caracterizará típica ilegalidade, passível, portanto, de controle de legalidade. Não cabe, no caso, impugnação mediante ação direta de inconstitucionalidade – ADI (CF, art. 102, I, “a”).
Por outro lado, se o ato normativo ofender diretamente a Constituição, sem que haja alguma lei a que deva subordinar-se, terá a qualificação de ato autônomo e, nessa hipótese, poderá sofrer controle de constitucionalidade pela via direta, ou seja, através de ADI.
Sendo assim, para que seja viável o controle de constitucionalidade de decreto, regulamento ou outro tipo de ato administrativo de cunho normativo, dois serão os aspectos que o ato deverá conter:
■ é indispensável que ele tenha, de fato, caráter normativo, isto é, seja dotado de “normatividade”, de generalidade e abstração; e
■ é necessário que ele tenha caráter autônomo, vale dizer, o ato deve conflitar diretamente com a Constituição da República (o conflito não pode ocorrer entre o ato e uma lei que ele regulamente).
Caso contrário, o controle judicial deverá ocorrer por outras vias, e não por ADI. Atualmente, por exemplo, é cabível a impugnação direta pela arguição de descumprimento de preceito fundamental, instituto previsto no art. 102, §1º da CF.
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